Em novo capítulo da limpeza étnica, relatos da Palestina

Internacional
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“Quando vamos dormir, colocamos as mãos no peito porque não sabemos se vamos morrer nessa noite.” O doloroso relato foi feito por Maram Hamdan, uma mãe de Gaza, durante uma live no canal da ativista brasileira Karine Garcêz nesta quarta-feira, dia 19 de maio. Em meio a mais um massacre sionista na estreita faixa, ela mostrou a mochila pronta, com alguns documentos, como passaporte, caso precise sair às pressas de sua casa que pode ser bombardeada a qualquer momento. Como contou, nesse caso, terá apenas cinco minutos para correr e levar toda a sua família na tentativa de salvar suas vidas.

Por Soraya Misleh, no Monitor do Oriente

Para 219 palestinos, entre os quais 63 crianças e 36 mulheres, não deu tempo. Foram assassinados pelas bombas que caem sobre suas cabeças desde 9 de maio. Entre eles, sete pessoas da família de Riad Eshkuntana. Os únicos sobreviventes foram ele e Suzi, sua filha de apenas seis anos de idade. “Minha esposa correu até as crianças para protegê-las, mas uma de minhas filhas fugiu para outro quarto. Com o segundo míssil, a casa foi dividida em duas partes … Havia três andares acima do nosso apartamento, o prédio desabou e estávamos sob os escombros”, descreveu ele ao Middle East Eye. As crianças tinham idade entre dois e sete anos de idade. A filha sobrevivente está em choque e não consegue falar depois do que se passou.

A família de Mohammed Al-Hadidi é outra vítima do massacre. Ele perdeu a esposa e três filhos e ficou com um recém-nascido para criar sozinho, após as bombas sionistas atingirem o campo de refugiados de Shati´, em Gaza. São muitos nomes e muitos novos órfãos, muitas mães que continuam a ter que enterrar seus filhos.

Segundo relatou também em live Ruayda Rabah, palestino-brasileira que vive sob ocupação na Cisjordânia, muitas mães em Gaza tentam salvar a vida de crianças que perderam suas famílias, mas bebês, em estado de choque, recusam a alimentação. Ela contou ainda a trágica história de um menino que perdeu toda a família num bombardeio em 2013. A única sobrevivente foi a irmã, que morreu, contudo, no massacre em 2014. Quando o genocídio começou agora, ele não suportou: suicidou-se, atirando-se do oito andar de um prédio.

Lares inteiros são destroçados em mais um capítulo da limpeza étnica que já dura mais de 73 anos – desde a Nakba, a catástrofe com a criação do Estado de Israel em 15 de maio de 1948 em 78% da Palestina histórica. Como resumiu Maram, “nós não podemos respirar” desde então. E indigna-se: “Como o mundo se cala diante de tanta injustiça?”

Na Cisjordânia – em que 26 palestinos foram mortos até agora e mais de 500 ficaram feridos por resistirem à ocupação criminosa e saírem em protestos contra a tentativa de Israel de levar a cabo expulsões de famílias no pequeno bairro de Sheikh Jarrah, em Jerusalém, bem como contra o massacre a Gaza –, Ruayda descreve o sentimento enquanto mãe: “Tememos pela vida dos nossos filhos quando vão à escola ou ao trabalho. Tememos não conseguir protegê-los.”

Ela lembrou que essa é a realidade das mulheres palestinas desde 1948, que lutam e resistem desde sempre. E enfatizou: “Temos o direito de ser livres. É hora de dar um basta, ter justiça para o povo palestino. Israel precisa ser julgado por seus crimes de guerra.”

Resistência

Ruayda expressou sentimento que explica por que a resistência une espontaneamente toda a sociedade palestina fragmentada há 73 anos – na Cisjordânia, Gaza, Jerusalém, Palestina de 1948 (onde hoje se denomina Israel), nos campos de refugiados e na diáspora, como se vê atualmente. “As mulheres palestinas não aguentam mais enterrar seus filhos, não aguentam mais visitar seus pais, maridos e filhos por alguns minutos e passar por tanta humilhação. A situação na Cisjordânia é insuportável.” Ali os palestinos estão submetidos a um regime institucionalizado de apartheid, expansão colonial agressiva e limpeza étnica contínua.

Neste momento, a resistência que se fortalece mantém, como sintetizou outro palestino, o espírito elevado, ao desafiar a contínua Nakba e expô-la ao mundo. Contar cada história é mostrar que não se faz sem dores, lágrimas e muito, mas muito sacrifício.

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Um exemplo foi dado por Ruayda: em meio à pandemia de Covid-19, as UTIs na Palestina estão lotadas e não há leitos para tratar dos feridos gravemente pela violência da ocupação nos protestos. Famílias que têm seus entes queridos nessas UTIs têm pedido que os removam para que jovens feridos possam ser tratados. O que expressa uma das marcas da luta palestina: a consciência coletiva e solidária, em meio ao martírio.

Jogar luz sobre histórias como essas é parte da resistência. “Contem ao mundo o que viram porque a comunidade internacional nos abandonou” – é o que mais pedem os palestinos a quem os visita em suas terras ocupadas. Nas palavras de Maram, cujo maior sonho é “ser livre”, “mostrem a realidade e defendam nosso povo”.

Um palestino de 1948 descreveu ao Middle East Eye que seus “amigos israelenses” têm lhe enviado mensagens dizendo para não se preocupar, que em breve “tudo voltará ao normal”. E reflete: “Eu penso comigo mesmo: ‘o normal para você é voltar às praias. O normal para nós é voltar para as nossas gaiolas. O que é normal para um palestino em Gaza, Cisjordânia e Jaffa? Sorrir enquanto lhe servimos falafel e homus, ao vender-lhe os nossos vegetais ou reparar os seus carros mais barato do que faria em casa, ou trabalhar nas suas obras?”

E conclui: “Estamos com medo do derramamento de sangue que pode ocorrer. Mas estamos felizes. Pela primeira vez na vida, vejo algo que está adormecido há décadas, se mexendo, ganhando vida. Vejo uma nova geração surgindo. Eles são mais jovens do que eu. Eles não recebem ordens de ninguém e estão se levantando. Estou feliz em não me considerar um ‘árabe israelense’. Eu sou palestino, e pela primeira vez na minha vida posso ver a luz no fim do nosso longo túnel.”

Quando os crimes contra a humanidade de Israel deixarem de estar sob holofotes, é preciso não esquecer desse recado: o mundo não pode achar que tudo voltou ao normal. Porque o “normal” na Palestina é voltar ao inferno de conviver com uma ocupação criminosa, em que todos os direitos humanos fundamentais são violados. É o inferno de viver sob bloqueio desumano há quase 14 anos em Gaza e bombardeios a conta-gotas. É o inferno de viver sob 60 leis racistas na Palestina de 1948. É o inferno de conviver com verdadeiras milícias de colonos sionistas cujo slogan preferido é “Morte aos árabes”. É o inferno de terem que permanecer amontoados em campos, de forma precária, 5 milhões de refugiados nos países árabes à espera do retorno. É o inferno de ver os velhos morrerem tristes, como estrangeiros, na diáspora, impedidos de rever seus familiares espalhados pelo mundo, sonhando com a Palestina.

A solidariedade internacional efetiva deve ser permanente, como um farol a manter acesa a luz no fim do longo túnel. Até a Palestina livre, do rio ao mar.